A Descoberta de um País Nobre
Em 1994 realizei com alguns amigos uma das viagens mais surpreendentes na minha vida. Não só pela extensão, e pela ousadia, mas também pelas surpresas que foram surgindo ao longo do caminho.
Velejamos desde Miami até Ilha Bela em dois pequenos catamarans.
O roteiro talvez tenha sido o mais inovador de todas as expedições que participei, pois quando chegamos à Venezuela, após 100 dias de Caribe, entramos no delta do Rio Orinoco, e por ele navegamos 1.800 quilômetros contra a corrente em plena floresta amazônica. Enfrentando corredeiras, dilúvios inimagináveis, a guerrilha da Farc, a corrupção da polícia local, a falta de abastecimento, as nuvens de insetos que insistiam em nos devorar, e para completar nós não tínhamos cartas fluviais para nos orientar. Nós navegamos apenas com uma folha de mapa da América do Sul sem nenhuma precisão. Depois de várias semanas chegamos ao Canal do Cassiquiare, que une naturalmente as bacias do Rio Orinoco e do Rio Amazonas.
Foi por este canal que chegamos ao Brasil, na fronteira tríplice com a Venezuela e a Colômbia. Descemos o Rio Negro inteiro e depois o Amazonas até alcançar Belém, quase na beira do Atlântico.
Cortamos a Amazônia do Mar do Caribe ao Atlântico em 75 dias percorrendo 5.500 quilômetros por três rios e um canal. De volta ao mar, nos deparamos com o trecho mais difícil: Belém – Natal e os 1.800 quilômetros de vento contra corrente, contra onda.
Mas a nosso favor nós tínhamos a vontade de chegar, e a beleza selvagem do pedaço da costa brasileira menos conhecida e menos habitada.
Conhecida por Furos Paraenses e Furos Maranhenses, este pedaço de costa é extremamente recortado, e nestas reentrâncias profundas, existem grandes manguezais, rios, e pequenos vilarejos escondidos pela mata.
Moram ali gente que vive da pesca. Gente simples, pessoas que levam uma vida rústica naquelas águas salobras, mas são pessoas de coração doce.
Eu não imaginava encontrar tanta elegância nos gestos daquela gente, e nas praias e bancos de areias da região eu tive grandes encontros.
Lembro-me como era um dia duro no mar. O barco batendo o dia todo e sem parar nas curtas ondas do litoral do Pará. A sensação era a de que a qualquer momento o barco iria desmontar. E foi o que acontecia mesmo. Praticamente quebramos alguma peça do barco todos os 50 dias deste trecho.
A rotina era muito espartana, pois velejávamos dez horas por dia sem muito progresso, mas já sabíamos que seria assim e o que sobrou foi ser resiliente e simplesmente ir. Acordávamos antes do Sol nascer, desmontávamos o acampamento, tomávamos o nosso café da manhã e empurrávamos as nossas jangadas hi tech contra a arrebentação. Quando conseguíamos nos esquivar de uma onda prestes a nos pegar era um alívio e motivo de muita comemoração. O resto do dia era lutar contra a natureza, ou melhor dizendo, tentar poupar os nossos dois catamarãs, pois eles tinham que nos levar de volta para casa. Ilhabela. Os dias eram longos e molhados, pois as ondas arrebentavam na lateral do barco adernado, jorrando um balde de água salgada na nossa cara. Como o progresso era lento, eu tinha muito tempo para pensar na vida. Era quase um transe, que só era interrompido por algum peixe voador, ou alguma conversa ocasional com o Duncan, meu companheiro de barco. Neste trecho da viagem nós judiamos bastante dos nossos corpos. A pele ficava permanentemente molhada e salgada. No final do dia quando já estávamos em alguma praia nem sempre encontrávamos água doce. Como o vento era muito forte nos meses de setembro e outubro, nossas barracas eram invadidas pela fina areia das dunas da praia. De manhã cedo eu sempre acordava com a boca cheia de areia, assim como o ouvido. O corpo foi assimilando um misto de pele ressecada com sal. Mesmo com toda a proteção solar era difícil se proteger. Havia muito reflexo do Sol na água do mar. Em um destes dias paramos em uma ponta de areia onde havia alguns pescadores vivendo em palafitas. Logo vieram eles, os curiosos, ver o que eram aquelas duas jangadas tão exóticas, e como sempre em todos estes tipos de encontros, era uma questão de minutos para nos convidarem para jantar com eles. Subimos em uma das palafitas onde eles viviam e sentamos em círculo no piso. No centro havia um cesto comunitário com camarão seco, resultado da pesca do dia.
Com uma luz amarelada pelo lampião eu podia ver na pele dos nossos anfitriões como a vida se desenhava nas rugas provocadas pelo Sol e o mar. As mãos eram fortes e machucadas, ainda assim não se via nada que não fossem sorrisos. Os olhos eram meio embargados pela exposição excessiva ao Sol. Enquanto eu me refestelava com o camarão, eles nos contavam como era a vida deles por ali. Como naquela região existe um movimento grande de maré e existem muitos rios desembocando nos manguezais, as praias mudam de lugar, e eles por sua vez também desmontam suas palafitas de tempos em tempos conforme a natureza redesenha o litoral. São na verdade nômades dos bancos de areia, e vivem da pesca do camarão, do sururu e do caranguejo. O dia seguinte começava muito cedo. Lembro-me de acordar e começar a tirar areia de dentro do meu ouvido. Acontece que durante as noites nossas barracas eram invadidas por muita areia que voava com muita força por causa do vento. O nosso progresso era lento por conta das condições do mar. Já li em guias náuticos internacionais, que nenhum velejador de bom senso deveria se aproximar daquela costa para velejar no sentido contrário ao vento naquela época. Dizia ainda que este é um dos piores trechos do planeta para navegar. Além de tudo havia muitos bancos de areia, e foram várias as vezes que quase encalhamos no meio de mar. As armadilhas dos pescadores também eram outro obstáculo, pois elas avançavam mar afora como se fossem verdadeiras cercas de bambu. Navegamos nos piores meses do ano, setembro e outubro, onde todos os dias o vento variava entre 25 a 35 nós. Isto significa muito vento, e por causa destas condições tão precárias nossos barcos desmontaram. Foram necessários 50 dias para chegar à Natal e isso teve um custo alto. O mastro caiu três vezes, quebramos duas travessas traseiras do barco, 17 estais partidos (cabo de aço que sustenta o mastro), lemes, centenas de rebites. Eu me lembro bem, pois todos os dias bem cedo, quando saíamos de alguma praia eu olhava para o meu barco, e me perguntava o que iria quebrar naquele dia. Esta era uma certeza, algo iria acontecer, e onde iríamos parar ninguém poderia saber. Este foi um grande aprendizado para mim, pois testei ao máximo a paciência, a resiliência e a confiança. A cada quebra surgiam situações novas e inesperadas. Dependendo da quebra éramos obrigados a procurar ajuda em qualquer lugar para consertar a peça avariada.
Imagina achar um torneiro mecânico no meio de um manguezal, mas teve um dia que achamos um. Este foi o ponto alto desta etapa, pois o inesperado mudou toda a nossa perspectiva, e a cada quebra o destino nos levou para recantos que jamais conheceríamos se não tivéssemos quebrado. Quando entendi que a viagem não era tão precisa assim, que nem tudo era possível de se controlar e que de algum modo os eventos aconteciam para no final vivermos o inesperado. Aceitei, e relaxei. Assim pude ter um encontro sem julgamento e definitivo com o destino. Foi um dos aprendizados mais significativos que tive na vida para aprender a aceitar as coisas que a vida oferece. O passo seguinte foi confiar. Confiar que algo melhor viria, e sem ansiedade, como uma folha que é carregada pelo vento, que só termina sua jornada quando ele decide parar de soprar. Uma destas inúmeras quebras foi um parafuso interno no casco do meu barco que partiu, e assim o mastro despencou. Rebocamos com o outro barco para dentro de um manguezal imenso formando uma baia. Depois descobrimos que era a Baia Camará- Açu. Velejamos muito até encontrarmos um pequeno pesqueiro que nos levou para dentro dos furos até chegarmos a um lugar chamada Nova Olinda. Foi lá que conhecemos Ney Agostinho, um catarinense que tinha um pequeno pesqueiro e vivia na região. Foi ele que nos recebeu e nos ajudou a organizar o nosso conserto. No final da manhã do dia seguinte já com o barco arrumado ele nos rebocou até um outro vilarejo muito pequeno.
Normalmente nestes vilarejos a vida se desenvolve a partir de um pequeno píer. A economia vem da pesca e da construção de embarcações. Um fato impressionante e admirável é que o Brasil é o país do mundo com a maior diversidade de pequenos pesqueiros artesanais. Infelizmente eles tendem a desaparecer, pois a indústria pesqueira além de devastar os nossos mares, não dão chance ao velho pescador. No caminho passamos por uma região onde a pesca do sururu é a principal atividade da região. O sururu é uma espécie de concha que fica dentro da areia do mangue. Os pescadores esperam a maré baixar e em uma espécie de lodo eles ficam por horas a fio enfiando a mão no solo arenoso agarrando um a um. Daí sai o sustento de muita gente.
Seguimos viagem e pelo caminho refleti sobre os diversos Brasis que vivemos. Tanta gente vive de forma tão singular, tão distante da nossa imaginação e no dia a dia onde somos engolidos pela rotina, nos esquecemos de que em algum lugar longínquo existem pessoas que ainda vivem regidos pelos ciclos da natureza.
Estas pessoas estão desconectadas do modismo, da tecnologia que anda engolindo o sentir, e mantendo milhões de seres na beira da estrada da vida.
Chegamos no vilarejo por volta das 4h da tarde, após algumas horas de reboque pelos canais internos dos manguezais. Amarramos os barcos no píer e saltamos felizes para explorar o vilarejo. O Duncan, meu companheiro de barco que é um Sul Africano estava encantado com toda esta sequência de acontecimentos, pediu ao Ney para procurar alguém para cozinhar um sururu. Ney nos levou a casa de um velho amigo. As poucas ruas do lugar eram de areia de branca. No caminho percebemos que vinham atrás de nós uma porção de gente, aliás, quase a vila toda. O Ney nos explicou que era a hora do banho e naquele mágico lugar o banho era coletivo. Não achei que fosse verdade, mas ele confirmou e explicou que todos os dias no final da tarde as pessoas iam para uma curva de rio, e separados entre mulheres e homens cada grupo entrava no rio para se banhar. As crianças com a mulheres ficavam na parte acima do rio, e abaixo os homens. Todo mundo carregava toalha, sabonete e percebi que caminhavam na maior alegria e animação. Imagine que existe um lugar no mundo onde todos se banham juntos, junto à natureza, com muita naturalidade e pureza. Depois do banho todos retornaram à suas casas e nós fomos organizar o nosso sururu. Jantamos maravilhosamente bem, e para mim o ritual de um jantar, ou qualquer outra refeição, me traz muita felicidade. É muito dolorido saber que uma grande parte do mundo não tenha o que comer, e que uma outra grande parte não se alimente com consciência. Existem aqueles que transformam o ato sagrado em competição, estimulando uma indústria de críticos a eleger os melhores restaurantes de cada cidade.
Mas o que eles sabem do mundo. Quase nada. Pois se alimentar é uma experiência da alma ligada aos nossos sentidos. Para mim o melhor restaurante do mundo naquele dia era jantar na porta da casa de um senhor generoso que preparou um suculento sururu. O gosto da comida está ligado a generosidade de quem te serve. Continuamos viagem no outro dia pelos furos paraenses até novamente enxergar o mar. Voltamos à nossa rotina destemida de desafiar os fortes ventos alísios da costa norte brasileira. Eu sabia que o barco iria quebrar novamente. Sabia que chegaria em um lugar novo e que seria surpreendido por uma nova história. A viagem terminou em Ilha Bela alguns meses depois, e no total foram 289 dias vivendo com quase nada.
Talvez esta viagem tenha sido entre todas as sete, a viagem que mais me transformei. Viajar com quase nada e viver tanto foi a experiência mais forte que tive para entender que neste mundo carregamos conosco somente os registros das nossas emoções.
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